A contrabalança contra a contrarrevolução

O tempo cura todas as feridas, mas deixa marcas. As cicatrizes são recordatórios irremovíveis das duras experiências e das lambadas levadas no árduo caminho da militância contra o status quo. Depois de quase duas décadas carrego as minhas com certo orgulho, afinal de contas quem não tem cicatrizes não lutou e portanto não tem inimigos. Li em algum lugar que \”a pessoa pode ser medida pelo tamanho de seus inimigos\”. Acho que faz sentido.

Mas não podemos ignorar as lições aprendidas em cada batalha. O que mais tenho percebido é que o sistema mercantilista e o individualismo são implacáveis. Se supunha que o Movimento Software Livre fosse um polo de resistência ao modelo tradicional de exploração do homem pelo homem, afinal, contribuir, compartilhar, somar, agregar, distribuir são todos adjetivos usados para descrever o bem coletivo. Mas fomos minados, distorcidos, vendidos, canibalizados, enganados e persuadidos a acreditar que esses adjetivos deveriam servir ao bom e velho modelo onde um irmão explora o outro. A ideologia virou modelo de negócio. Essa é a contribuição irreversível da OSI para o Software Livre.

Termos como FOSS ou Linux que servem para suprimir os termos Free Software e GNU, palestras sobre como fazer dinheiro com Software Livre, exposição ao ridículo dos defensores ideológicos, mercantilização das marcas mais conhecidas, recrutamento dos melhores desenvolvedores e ativistas, são algumas das técnicas usadas para levar a cabo a contrarrevolução da OSI para descaracterizar o movimento social e político do Software Livre, mudando seu contexto e importância ideológica para tornar os adjetivos acima em meios de produção, modelo de negócio e agradar ao deus mercado.

Software Livre não é um modelo de negócio e, portanto, tem princípios éticos e ideológicos que se sobrepõem a qualquer tentativa de conciliação com ações que se coloquem de encontro a esses princípios. Já a OSI é volúvel, condescendente, ardilosa, esperta, simbiótica e letal. Transformar o Open Source em sinônimo de Free Software é a artimanha mais nefasta de todas, levada a cabo e praticamente consumada no imaginário coletivo.

O argumento de que é necessário popularizar o acesso ao Software Livre é irresistível. Todos caíram nele. Mas como esse nunca foi o verdadeiro ponto, foram feitos alguns ajustes no método: demonizar o Stallman, remover o GNU da jogada, fortalecer o termo Código Aberto – Open Source, e especialmente justificar a presença de código não livre, não aberto, nos principais programas a serem usados, em especial o kernel Linux. Assim abriram-se as portas para a invasão de drivers proprietários que aliviaram a pressão sobre os fabricantes de hardware. Não por coincidência esses são os maiores financiadores da OSI e da própria Linux Foundation. Até mesmo a demonizada Microsoft financia os principais projetos OSI do mundo. A cereja do bolo foi o impulso dado a uma distribuição que coadunasse com essas ideias e da mesma falta de comprometimento com o Software Livre e que estivesse disposta a assumir a relevância como distribuição padrão para as pessoas comuns, pois seria fácil de usar, compatível com todos os equipamentos, apoiadora dos grupos de usuários, focada no desktop e prova cabal de que um modelo de negócios baseado nos princípios do Software Livre era possível e viável: Ubuntu.

Mas talvez a maior de todas as armadilhas da contrarrevolução da OSI tenha sido a criação da complacência coletiva para justificar o uso de Software Proprietário, em nome de algo maior. É o caso dos drivers embutidos no Linux, mas é também o uso de ferramentas de comunicação social como o Google, Skype e Facebook. Se for para criar e manter uma lista de discussão de grupos ou desenvolvedores de FOSS, qual o problema se ela for hospedada e mantida pelo Google Groups? E as páginas dos projetos ou dos grupos de usuários podem ser no Facebook, qual é o problema? Afinal de contas, apesar de serem ferramentas absolutamente proprietárias, cerceantes, que não respeitam a privacidade, elas facilitam a vida das pessoas promovendo uma maior disseminação do FOSS. Como já expliquei antes, isso é um meio para colocar em prática a contrarrevolução que destrói os valores e princípios ideológicos do Software Livre. Porque não pode haver nenhuma concessão na liberdade para tentar garanti-la. Não faz sentido defender a liberdade do software usando software privativo, da mesma forma que não faz sentido defender a privacidade usando redes sociais devassas.

Mas não há nenhuma dúvida que os apelos mercadológicos da OSI prevaleceram. Ubuntu é a distribuição mais usada, as redes sociais devassas estão entupidas de ativistas, e a  maioria das pessoas não sabe a diferença entre Código Aberto e Software Livre. Então, se não reagirmos de alguma forma, vamos sucumbir até o último homem. Dentro de mais uma década não haverá mais nenhuma chance de reverter o quadro e o Movimento Software Livre será enterrado no caixão do Stallman.

Reagir como? Contrabalançando. A ação contra as empresas de Software Proprietário, os dinossauros como a Microsoft e IBM foi de enfrentamento direto. Não estávamos no mesmo \”playground\”, até porque para eles isso nunca foi diversão, foram negócios, certo?

Neste caso o inimigo não parece inimigo, e se apresenta como de alta confiança e completamente alinhado com os princípios do movimento, então temos que ser tão esquivos quanto eles. É hora de reagir de forma silenciosa, mas firme em diversas áreas de atuação:

  • Não compre mais computadores, celulares ou tablets que não possam usar GNU ou versões modificadas de Android (CyanogenMOD, OMNI ou Raptor);
  • Migre seu e-mail para um provedor pago ou organize uma quota para alugar um servidor e instale seu próprio Mail Server. Zimbra é uma excelente opção;
  • Convide os colegas do seu grupo de usuários para migrarem suas listas de discussão para um servidor livre ou instale o mailman e gerencie você mesmo;
  • Não compre ou use equipamentos com o sistema operacional privativo: MacOS, Windows ou outro qualquer;
  • Diga sempre sistema operacional GNU. Isso lhe forçará a ter que explicar e então ganhamos a chance de fazer as pessoas entenderem o que é Software Livre;
  • Elimine o nome Linux. Esse não é mais um projeto de Software Livre. Fizeram um fork livre que se chama Linux-libre;
  • Convide seus amigos e família para usarem redes sociais livre e federadas como Friendica, Diáspora, RedMatrix, Pumpio ou Twister;
  • Faça eventos de Software Livre sem usar termos como OpenSource, Código Aberto, OSI ou FOSS;
  • No Próximo FLISOL não instale mais Ubuntu, pois esse é o verdadeiro \”Linux Vista\”;
  • Não ative sua conta do Gmail no Android! Use o aptoide.com ou fdroid.org como loja para instalação de aplicativos e seja livre! (do Google);
  • Instale o Telegram e mostre para as pessoas que usam o WhatsApp que o azul é muito mais legal que o verde. Seja porque pode ser usado no desktop, no navegador ou no celular, seja porque é encriptado, seja porque tem autodestruir mensagens, seja porque seu cliente é livre;
  • Não seja desagradável: se confrontado sob o porque de dizer GNU em vez de Linux, responda que se são a mesma coisa, então você prefere dizer GNU;
  • Instale a última versão do Firefox e use a extensão RequestPolicyContinued [1] para barrar todos os javascripts maliciosos que monitoram sua navegação. Faça o mesmo para toda a família e transforme a ação de barrar cada monitor em concurso divertido em família ou entre os amigos do trabalho;
  • Teste e distribua para todos o Popcorntime e você verá  acara de espanto e alegria das pessoas por poderem ter um \”netflix\” gratuito à disposição;
  • Mostre para as pessoas a tabela de opções e alternativas livres às ferramentas proprietárias: prism-break.org/pt/;
  • Não use Google como buscador primário. Tente o duckduckgo.com e se surpreenda.

Se não puder fazer tudo ao mesmo tempo, dedique-se a alguns primeiro. Persista e verá como isso se espalha e surte efeito rapidamente. E sempre que encontrar oposição, tenha paciência, explique incansavelmente que você defende os princípios do Software Livre e não do OpenSource. Deixe claro que você quer mudar o mundo e não facilitar os métodos de exploração. Deixe claro que este é um movimento social e político e não um modelo de negócios. Tenha fé nos princípios da amizade, do compartilhamento, da doação, da força do coletivo para o bem do coletivo.

Se todos agirmos de forma consciente e cuidadosa, em guerra de guerrilha cibernética, gerando massa crítica, o Debian com linux-libre e o CyanogenMOD poderão se tornar padrão de mercado, mas especialmente padrão de mentes livres, que não serão complacentes com suas principais riquezas: liberdade e privacidade.

Saudações Livres!

 

1 – https://requestpolicycontinued.github.io/

4 comentários em “A contrabalança contra a contrarrevolução”

  1. (Já postei esse comentário no artigo “O usuário sai do Windows, mas o Windows não sai do usuário!” [http://www.andremachado.org/artigos/1267/o-usuario-sai-do-windows-mas-o-windows-nao-sai-do-usuario.html]. Quero ver o que pode dar aqui).

    Bom dia,

    Sou formado em Ciência da Computação e desde 1997 seu usuário GNU/Linux em alguma medida (primeiro com a distribuição Conectiva, depois com o Slackware (1998) passando em 2006 ao Ubuntu e agora me estabilizo no Debian).
    Mais recentemente dei-me o direito de buscar me aprofundar em disciplinas que a muito me cativavam como Sistemas Operacionais, Inteligência Artificial, Computação Gráfica e mais outras duas. Essa mensagem é para especificamente tratar a respeito C.G. e relaciona-la com o que foi exposto no texto acima.
    A pergunta é: como não trabalhar em algum momento com softwares/drivers proprietários e mais especificamente com drivers proprietários no caso da C.G. se seus equivalentes livres não dão todas a funcionalidades/desempenho de que precisamos para plenamente trabalhar com C.G.?
    Não faltaram episódios de frustração quando, estudando C.G. com PyOpengl (citando só um exemplo), me deparava com mensagens de erro que me levaram a constatar que o problema era o driver de vídeo livre que não suportava um dado recurso necessário para algo que estava naquele momento estudando. Sei que houve muitos progressos no desenvolvimento dos drivers para GPUs da Nvidia e AMD mas que ainda não estão tirando todo potencial que uma GPU até mesmo de baixo desempenho ( e o que dizer as de alto desempenho).
    Também sei que os drivers para as GPUs da Intel embarcados em seus processadores da série i são os que mais se aproximam do que podemos dizer como livres mas por outro lado a Intel terá que rebolar MUITO para chegar ao nível das GPUs da AMD e o que dirá da Nvidia.
    Bom, essa é a minha opinião que pode muito bem mudar se me demonstrarem que estou errado!
    Também espero uma réplica civilizada para o que expôs acima e uma bom debate a respeito.

    Milton

  2. Para respostas mais imediatas, respondam a este comentário na Diaspora (https://diasporabr.com.br/posts/479151, ou https://diasporabr.com.br/posts/775292d08aac0132a46a005056ba3b3d), enviem-me um e-mail ([email protected]), ou escolham outra forma de entrar em contato comigo visitando meu *site* pessoal (http://adfeno.mooo.com).

    Adorei teu texto. Um pouco salgado, mas útil.

    Antes de começarem a dar tapas com longas palavras e frase, gostaria de dizer que somos todos humanos, logo somos suscetíveis ao erro, e esta postagem não foge desta regra…

    Primeiro gostaria de dizer que por meio de um tópico no fórum do GNU+Linux-libre Trisquel (https://trisquel.info/en/forum/trisquel-not-worth-mention-prism-breakorg), em 2014, foi comprovado que o site PRISM Break (https://prism-break.org/) não serve mais aos nossos propósitos. Além disso, disso o site do PRISM Break tem foco em **segura** não em **liberdade**, tanto que o pessoal de lá **assume que o GNU+Linux-libre Trisquel não é livre** pois “é um projeto-filho do GNU+Linux Ubuntu” (https://github.com/nylira/prism-break/issues/334). Sem contar que nós todos sabemos (eu pelo menos pressupus isso) que quando falamos de *software* livre, estamos falando de **liberdade**, não de **segurança**. Alguns programas livres de fato oferecem segurança, mas apesar disso, não podemos assumir que software livre é sempre seguro, ou que o mesmo é sinônimo de segurança.

    Quanto ao Telegram, até mesmo o pessoal que contribui e revisa o Free Software Directory está em cima do muro (http://directory.fsf.org/wiki/Telegram), por que temos que colocar nossa carroça na frente?

    Entrando no assunto dos substitutos para o Android, concordo que temos que melhorar nossa escolha por celulares e *tablets*, mas eu instalaria o Replicant (http://www.replicant.us/), principalmente por ele ser a única distribuição Linux livre e não GNU (https://www.gnu.org/distros/free-non-gnu-distros.html) desenvolvida para substituir o Android.

    Quanto aos equivalentes ao Google Play/Android Market, o único livre até o momento é o F-Droid (http://directory.fsf.org/wiki/F-Droid).

    Quanto ao Zimbra, se eu entendi corretamente, ele também é um *software*, e sendo um *software*, devemos dar a palavra aos mestres, mandando o projeto para avaliação no Free Software Directory, para depois que o resultado sair, podermos chamá-lo de livre ou não.

    Continuando, gostaria de dizer que o Firefox continua sendo *software* não livre/proprietário. Por esse motivo, recomendo o GNU IceCat (http://directory.fsf.org/wiki/GNU_IceCat). O RequestPolicy de fato é livre, mas não sei nada sobre o RequestPolicyContinued.

    Não menos importante, não sei se o Popcorn Time é livre, pelo menos não vejo resultados dele no Free Software Directory (http://directory.fsf.org/wiki?search=Popcorn+Time&title=Special%3ASearch), nem se quer como entrada, o que me leva a crer que ele nem se quer foi enviado para avaliação.

    Quanto ao FLISOL, a mesma regra vale para sistemas como Fedora, Mint, CentOS, FreeBSD, Debian (até a variante com GNU Hurd), Tails, Backtrack, OpenSUSE, RedHat Enterprise, e todos os demais que não constam na lista de distribuições GNU+Linux livres (https://www.gnu.org/distros/free-distros.en.html) ou na lista de distribuições livres não GNU (https://www.gnu.org/distros/free-non-gnu-distros.html).

    Para terminar, gostaria também de agradecer o excelente trabalho mencionando o Linux-libre, o GNU Mailman, as redes descentralizadas (pois todas as mencionadas são *software* livre segundo o Free Software Directory). E dizer que existem também as redes GNU Social (http://directory.fsf.org/wiki/Social) (semelhante ao Twitter) e GNU Consensus (https://www.gnu.org/consensus/) (não sei como descrever esse projeto).

    Respeitosamente, Adonay.
    Tenham um bom dia.

  3. O Muro de Berlim foi derrubado em 1989, tendo marcado, de maneira emblemática, o esfacelamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e, como consequência, a morte da utopia da existência de “um mundo justo e melhor” pregado pelos ideólogos do comunismo e seus adeptos.
    Vinte e seis anos se passaram, mas ainda conseguimos nos deparar com um pensamento “fossilizado”, deslocado no tempo e no espaço, como o que fundamenta a mensagem transmitida no texto acima.
    Respeito todos os que comungam dessas ideias, que considero retrógradas e nocivas, não só ao desenvolvimento do software livre, mas a todas as sociedades, porque respeito e tenho apreço pelos valores democráticos, que garantem a todos a liberdade de expressão do pensamento, mas não posso deixar de registrar meu espanto ao me dar conta de sua existência, a despeito de todos os fatos evidenciados pela História recente.
    Puristas, existem distribuições Linux aos montes, muitas delas recheadas apenas com software totalmente livre.
    Parem de implicar com quem decidiu trilhar um caminho diferente.

    1. Não estamos implicando que os defensores do *software* de código aberto devem defender o *software* livre. Muito longe disso, estamos contra os defensores do *software* de código aberto que usam do nome “*software* livre” para divulgar o movimento do *software* de código aberto, que não é sinônimo de liberdade.

      Respeitosamente, Adonay.
      Tenham um bom dia.

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